sábado, 28 de maio de 2011

Parábola da Cadeira

Era uma vez uma cadeira, velha, vacilante, uma das mais arrebentadas que já se viu. Sua pintura estava toda enrugada, gasta e a sua cor desbotada. Não podia mais sustentar o próprio peso. Raspões, sujeiras, manchas, pés frágeis, pedaços quebrados. Não chegava mesmo a lembrar de sua beleza primitiva.
Uma camada de pintura após outra era toda a sua vida passada. Vez por outra, uma nova retocada na pintura a melhorava. Depois novamente, rachava e descascava de alto a baixo, tornando-a pior que antes. Era cor em cima de cor: vermelho, azul, verde, branco, camada sobre camada.
Pobre cadeira. Como recordar o que era sob tantas camadas sucessivas?
Um belo dia, entretanto, ela se viu entre as mãos de um marceneiro. Não sabia mesmo como havia chegado lá. Havia sido triste chegar ali na pressa, aos empurrões a sacudidas no fundo de um caminhão. Mas já que estava ali... Não queria, porém, prestar atenção em nada. Afinal já havia passado por tantos lugares mais ou menos idênticos..
O marceneiro tomou a cadeira e a lavou cuidadosamente. Havia algo no jeito daquele marceneiro que intrigou a cadeira. Assim se deixou e se resignou a receber uma nova camada de pintura. Que surpresa, porém ao contrário, o marceneiro se pôs a raspar a pintura. E como doía! A cura, entretanto, estava nestas mãos que machucavam.
Pacientemente, o marceneiro raspava de camada em camada cantarolando para ela: “Cadeira, o marceneiro te conhece, a tua real beleza ele a conhece, ele sabe que tu não és irresponsável, senão pela graça de seu cuidado amável.
O canto acalmava um pouco a cadeira. Ela não sabia porém o que pensar. O que estava acontecendo? Porque parecia mais pesada? “Eu não agüento mais”, gritava ela. “Parem com isso, cubram-me, deixem-me só”.
Dia após dia, contudo, o marceneiro perseverava. Oh! sim, por vezes dava alguns dias de repouso à cadeira. Que alívio sentia, ainda que estivesse terrivelmente consciente de que faltava muito em seu caminho.
Dolorosamente, o marceneiro foi atravessando pouco a pouco o preto, o vermelho, o azul, o verde, o branco e etc. A cadeira percebeu, então, uma mudança no modo de agir dele. Sempre cheio de cuidados, tornou-se mais cuidadoso ainda para evitar qualquer machucadura. Na ultima camada, no amarelo, quando este começou a sair, a cadeira, num primeiro suspiro vital, teve uma idéia do que se encontrava debaixo.
Não mais pintura, mas madeira, madeira maravilhosa! Começou assim, a compreender a ação do marceneiro e porque seu tratamento havia mudado na derradeira camada: para não atingir a bela madeira que se revelava agora.
A cadeira apressada no desejo de se ver melhor. Pouco a pouco, a madeira apareceu plenamente. Que sensação de prazer e glória, que revelação! Ela cantava e dançava alegremente. Com esse sentimento,abandonou o marceneiro para viver livre da pintura, livre para ser ela mesma. Enfim, não tinha mesmo necessidade dele! A vida aparecia como uma realidade nova, excitante, pela primeira vez depois de muito tempo.
Aos poucos, entretanto, os sinais de glória se dissiparam. “As vezes, passava pelo marceneiro e via que outras cadeiras, mesas, móveis se reconstituíam por suas mãos para reencontrar seu resplendor natural. Pareciam, mesmo, refletir a beleza do próprio marceneiro. Era estranho constatar que não se havia apercebido antes de como sua madeira era rústica e sem brilho.
Humildemente, voltou ao marceneiro e passou muito tempo com ele. Em lugar de ocupar-se de milhares de coisas, permanecia do seu lado.
Num certo dia ele lhe disse: “Penso que você está preparada”. Tomou-a novamente, e esfregou com uma lixa (e como machucava). Só agora, porém, sabia que o marceneiro era conhecedor do seu trabalho. Ele esfrega, com uma lixa mais fina ainda.
E como foi bom desta vez! Jamais sentiu massagem tão agradável.
Em seguida, ungiu-a com uma estranha substância que realçou o calor da madeira e sua beleza, acrescentando-lhe um toque delicado, doce, acetinado. Ela jamais se imaginou tão bela! Por orgulho, a cadeira chamou alguém que passava para sentar-se, mas quase se quebrou toda, esquecida da fragilidade de suas pernas.
Amedrontada, correu para o marceneiro que a fez esperar um momento, para fazê-la tomar consciência de sua própria fraqueza. Depois, colou-a com solidez, comunicando-lhe um pouco de sua força.
Alguns dias mais tarde, olhando-se, a cadeira percebeu alguns riscos, um pouco de poeira aqui, um ponto machucado ali. Foi tomada de pânico, um velho medo vindo à superfície, a idéia de ser recoberta de pintura. Desesperada, agitou-se. Depois, parando, olhando longamente o marceneiro, veio-lhe uma luz definitiva.
Tinha necessidade dele não somente uma vez, mas para sempre. Havia sido restaurada por ele e era através dele que poderia continuar crescendo em beleza. Precisava ser desempoeirada por ele, limpa, lixada, para guardar sua solidez. Sim, já não era possível pensar em levar uma vida independente. Mas também não precisava mais temer as camadas de pintura.
Certamente para o marceneiro não foi fácil tirar camada por camada... muito trabalho, muita paciência, muita dedicação. Trabalho exaustivo mas o marceneiro estava sempre ali disposto a fazer o seu trabalho.

Trecho do livro: Rabi onde Mora
de Spencer Custódio - Editora Loyola

Um comentário:

  1. Que mensagem mais linda, amiga...
    fiquei aqui me deliciando e me pondo no lugar dessa cadeira sendo tratada pelas mãos do nosso amado Marceneiro Jesus!
    um grande beijo pra vc!

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